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Qualificação não falta — o que falta é trabalho decente


Por Carlos Lima 

Mesmo com milhões de trabalhadores qualificados saindo de cursos técnicos, do Sistema S e dos Institutos Federais, empresas enfrentam escassez de mão de obra. O problema não está na formação dos trabalhadores, mas na incapacidade do mercado formal de oferecer empregos atrativos, valorizados e dignos.

A crise de mão de obra no comércio revela o esgotamento do modelo de emprego precarizado no Brasil

A recente reportagem do Jornal Nacional (27/09/2025) trouxe um dado que deveria provocar um amplo debate nacional: a falta de trabalhadores no comércio brasileiro é a maior dos últimos cinco anos. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio (CNC), 57 das 100 principais ocupações do varejo sofrem com escassez de profissionais — especialmente no comércio eletrônico, que mais cresce no país. Empresas oferecem salários maiores, benefícios extras e bonificações por assiduidade, mas as vagas continuam sem candidatos.

O discurso patronal é conhecido: “falta qualificação”. Trata-se, porém, de um diagnóstico superficial que não resiste a uma análise mais profunda. O Brasil forma anualmente centenas de milhares de trabalhadores qualificados em áreas diretamente ligadas ao comércio — logística, atendimento, vendas, análise de dados, marketing, tecnologia — e, ainda assim, muitos deles optam por não aceitar empregos formais. A questão não está na formação da mão de obra, e sim na qualidade do emprego ofertado.

A qualificação está aí — e em larga escala

Nas últimas décadas, o país ampliou fortemente sua rede de educação profissional. O Sistema S (SENAI, SENAC, SENAT, SENAR) mantém centenas de milhares de matrículas por ano. Os Institutos Federais (IFs), criados em 2008, hoje somam mais de 650 campi em todos os estados, oferecendo cursos técnicos, tecnológicos e de qualificação voltados às novas demandas produtivas e digitais. Além disso, programas estaduais e municipais complementam a oferta, formando profissionais em praticamente todos os campos do comércio e dos serviços.

Há estudos que indicam taxas de empregabilidade superiores a 80% entre egressos de cursos técnicos em diversas regiões. Ou seja, o Brasil tem mão de obra qualificada — e muita. O que está em crise não é a formação dos trabalhadores, mas sim a sua disposição em aceitar vagas que não correspondem às suas expectativas e necessidades.

Trabalhadores qualificados estão rejeitando empregos ruins

O que os números mostram é que há uma recusa ativa às condições oferecidas. E as razões são conhecidas:

Remuneração insuficiente: mesmo com reajustes nominais, muitos cargos do comércio continuam pagando pouco acima do salário mínimo.

Jornadas longas e inflexíveis: escalas 6×1, pressão por metas e ausência de autonomia tornam os postos pouco atrativos.

Baixa valorização profissional: sem plano de carreira e com alta rotatividade, muitas dessas vagas são vistas como temporárias ou sem perspectiva.

Melhores alternativas fora da CLT: com a expansão do trabalho autônomo, do microempreendedorismo e da economia digital, muitos preferem a flexibilidade — mesmo com renda variável — ao regime formal tradicional.

Essa realidade desmonta o discurso patronal. O trabalhador qualificado não desapareceu — ele apenas rejeita empregos que não lhe oferecem dignidade, valorização ou perspectiva de futuro.

A ascensão do trabalho autônomo e a mudança de mentalidade

O Brasil tem hoje cerca de 26 milhões de trabalhadores por conta própria. Muitos deles possuem formação técnica e decidiram usar esse conhecimento para empreender, atuar como MEI, prestar serviços digitais ou abrir lojas online. A lógica é simples: em vários casos, essas atividades oferecem melhor remuneração, maior autonomia e mais liberdade de tempo do que as vagas disponíveis no comércio formal.

Essa mudança não é apenas econômica, mas também cultural e geracional. Jovens qualificados valorizam cada vez mais a flexibilidade e a autonomia — e já não aceitam a precarização disfarçada de oportunidade.

O problema é estrutural: empregos ruins afastam trabalhadores

A insistência em culpar a “falta de qualificação” tem uma função política: desloca a responsabilidade do mercado e coloca a culpa no trabalhador. Mas a raiz do problema está em décadas de políticas que desvalorizaram o trabalho: salários achatados, direitos corroídos, terceirização desenfreada e pejotização como regra.

Esse modelo está esgotado. A escassez atual de mão de obra não revela um “apagão de talentos”, mas sim a crise de um sistema produtivo que não valoriza o trabalho humano. É um sintoma de que os trabalhadores conquistaram mais consciência sobre seu valor — e estão usando isso para rejeitar empregos precários.

O caminho: trabalho valorizado e negociação coletiva

Mais cursos técnicos não resolverão a crise. O que precisamos é de um novo pacto social em torno do trabalho. Isso significa:

• Elevar salários reais e vincular remuneração à produtividade.

• Flexibilizar jornadas sem retirar direitos (a jornada 6x1 é extenuante).

• Oferecer oportunidades reais de carreira.

• Garantir proteção social e previdenciária também aos novos formatos de trabalho.

• Reforçar o papel dos sindicatos e da negociação coletiva para equilibrar a correlação de forças.

O problema não é o trabalhador — é o sistema

Nunca houve tanta mão de obra qualificada disponível no Brasil. Ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil preencher vagas no comércio. Essa contradição revela que o emprego formal, como é hoje, perdeu a capacidade de atrair quem tem conhecimento e qualificação. O desafio não é formar mais trabalhadores — é transformar radicalmente as condições do trabalho.

Enquanto empresas insistirem em oferecer baixos salários, jornadas desumanas e ausência de valorização, continuarão enfrentando escassez. Porque o que falta no Brasil não são profissionais — o que falta é trabalho decente, valorizado e digno de quem produz a riqueza deste país.

Carlos Lima – economista, sindicalista e pesquisador em economia do trabalho. Atua na análise crítica das transformações do mercado de trabalho e na defesa de um projeto de desenvolvimento com justiça social e valorização do trabalho.


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