Por Carlos Lima
Nos últimos dias, o nome de uma influenciadora conhecida como Esquerdogata dominou as redes sociais após ser detida em uma ocorrência policial e reagir com deboche aos agentes, comparando o preço de sua sandália com o carro deles. A cena, amplamente divulgada, gerou indignação até mesmo entre militantes de esquerda, que viram no gesto uma contradição profunda com os valores que ela dizia defender.
O episódio, porém, ultrapassa o erro individual. Ele evidencia as tensões de uma época em que a militância política se expressa, em grande parte, nas redes — território onde convivem, lado a lado, a luta genuína e o narcisismo travestido de consciência. As redes se tornaram ferramentas indispensáveis para denunciar injustiças, mobilizar solidariedade e dar visibilidade a causas populares. Mas também podem transformar a política em espetáculo, quando a busca por relevância supera o compromisso com o coletivo.
O comportamento arrogante diante de trabalhadores expôs um traço de classe que atravessa nossa sociedade: o desejo de distinção. Mesmo quem se proclama progressista pode, sem perceber, reproduzir o elitismo que diz combater. É o velho reflexo da cultura de consumo e status infiltrando-se na militância, onde o “parecer” vale mais que o “fazer”.
Há, contudo, uma diferença fundamental entre militância digital engajada — aquela que comunica a luta real, que organiza, forma, convoca e constrói solidariedade — e o ativismo performático, centrado na autopromoção. A primeira amplia a consciência social; a segunda, apenas o alcance pessoal. O problema não está nas redes em si, mas na lógica com que são usadas: quando o algoritmo define o tom do discurso, a política se torna produto.
O caso em questão revela também a crise de representação que atinge parte da esquerda digital. Na tentativa de competir com a retórica populista da extrema direita, surgiram ídolos de linguagem afiada, mas de prática rarefeita. E quando esses personagens caem, o dano recai sobre todos os que lutam por causas legítimas — porque a imagem pública da esquerda é tratada como um bloco homogêneo, e não como um campo plural.
O desafio que emerge desse episódio é ético e político: reconstruir uma militância que una coerência, humildade e enraizamento social, sem abrir mão das ferramentas digitais, mas sem se deixar moldar por elas. A política transformadora exige mais chão de fábrica e menos vitrine; mais empatia e menos espetáculo.
As redes podem ser ponte, não palco. Quando usadas com propósito coletivo, elas ampliam vozes silenciadas e fortalecem a base. O que o caso Esquerdogata nos lembra é que a revolução não se faz com filtros — se faz com gente, com verdade e com compromisso.
Carlos Lima é economista e dirigente sindical do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro
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