Por Carlos Lima*
A implosão da União Soviética não foi apenas a dissolução de um regime político, mas um verdadeiro processo de desmonte nacional. Nos anos 1990, a Rússia se converteu em laboratório neoliberal, onde o receituário imposto pelo FMI e por consultores ocidentais promoveu privatizações a preço de banana, entregou setores estratégicos a oligarcas e empresas estrangeiras, destruiu cadeias produtivas e condenou milhões de pessoas à miséria. O Estado foi enfraquecido a tal ponto que deixou de garantir funções elementares: salários e aposentadorias deixaram de ser pagos em dia, o sistema de saúde e educação entrou em colapso e a expectativa de vida da população caiu de forma dramática.
Foi um período de degradação social e institucional, em que a soberania russa foi aviltada e sua condição de potência mundial reduzida a escombros. Dessa conjuntura de ruína emergiu a figura de Vladimir Putin. Mais do que um líder individual, sua ascensão expressa a necessidade histórica de recompor o Estado e resgatar algum nível de autonomia frente à dominação ocidental.
Do caos neoliberal ao Estado recentralizado
A primeira fase do pós-URSS foi marcada pelo caos: inflação descontrolada, desemprego massivo, dissolução dos sistemas de proteção social e perda de territórios estratégicos. O governo de Boris Yeltsin abriu as portas para a pilhagem de recursos naturais e o rebaixamento do país à condição de periferia do capitalismo global.
O passo seguinte foi a reorganização parcial. Ao assumir o poder em 2000, Putin se apoiou na burocracia estatal, nas Forças Armadas e, sobretudo, no controle dos recursos energéticos para reconstituir a autoridade do Estado. Sua estratégia não eliminou a dominação das oligarquias, mas redefiniu suas bases: em vez de uma elite dependente exclusivamente do capital estrangeiro, consolidou-se uma oligarquia associada ao Estado e comprometida com a recuperação do poder nacional.
Essa recentralização não ocorreu por vias democráticas. Significou endurecimento político, repressão a opositores e concentração de poder na figura presidencial. Mas, como resultado, o Estado voltou a ter capacidade de ação — interna e externamente. A terceira etapa dessa trajetória foi o reposicionamento da Rússia no cenário mundial: resistindo ao avanço da OTAN em suas fronteiras, disputando mercados energéticos e intervindo em conflitos regionais, como na Síria, Moscou recuperou peso geopolítico e reintroduziu a lógica da competição entre potências.
Soberania como objetivo contraditório
O projeto de Putin reposicionou a Rússia como polo de poder, mas à custa de contradições profundas. No plano interno, manteve-se um capitalismo oligárquico altamente dependente da exportação de petróleo e gás, incapaz de diversificar plenamente a economia. A concentração de poder reforçou desigualdades sociais e reprimiu liberdades políticas, reproduzindo uma ordem conservadora que limita as aspirações da classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo, uma parcela significativa da população experimentou uma melhora real em comparação ao caos neoliberal dos anos 1990. O governo passou a pagar salários e aposentadorias em dia — algo básico na era soviética que havia sido desmantelado nos anos Yeltsin —, aumentou o orçamento para saúde e educação, e criou programas sociais como o “Mãe-Capital”, que oferecia apoio financeiro a famílias com filhos. Esses avanços não significaram a restauração integral do sistema social soviético, que garantia emprego pleno, moradia estatal e serviços universais. Foram antes uma recomposição parcial de funções sociais básicas que haviam sido destruídas pela terapia de choque neoliberal. Essa recomposição deu estabilidade, devolveu previsibilidade à vida cotidiana e fortaleceu o apoio popular à nova liderança.
No plano externo, a defesa da soberania nacional foi inegável. O controle sobre setores estratégicos — energia, defesa, tecnologia militar — permitiu à Rússia resistir ao cerco econômico e às pressões militares do Ocidente. Esse paradoxo explica por que a Rússia, mesmo longe de ser um modelo socialmente avançado, aparece como peça-chave na luta contra a unipolaridade imperialista.
Além das caricaturas ocidentais
A visão dominante na mídia ocidental reduz Putin a um vilão absoluto, quase uma reencarnação de déspotas do passado. Essa narrativa cumpre papel ideológico: reforça a ideia de que o mundo estaria dividido entre democracias liberais “iluminadas” e ditaduras autoritárias “atrasadas”. Trata-se de um esquema simplista, útil para justificar sanções, cercos militares e a expansão da OTAN.
Uma leitura de classe desmonta essa caricatura. Putin não age isolado; ele expressa os interesses de uma aliança entre a burguesia energética, o complexo militar-industrial e setores da burocracia estatal. Essa fração dominante compreendeu que a entrega total ao Ocidente equivaleria à perda de qualquer margem de autonomia nacional. Assim, o nacionalismo conservador se converteu em ideologia funcional para consolidar a ordem interna e projetar poder no exterior.
A geopolítica retorna ao centro
Durante as duas primeiras décadas da globalização neoliberal, difundiu-se a ideia de que a política de potências havia sido superada. O comércio internacional, a hegemonia financeira do dólar e as instituições multilaterais seriam suficientes para administrar os conflitos mundiais. A Rússia demonstrou o contrário: território, energia, capacidade militar e alianças interestatais permanecem variáveis decisivas.
Essa volta da geopolítica é inseparável da resistência russa ao cerco da OTAN e ao domínio estadunidense. A guerra da Ucrânia é expressão direta desse conflito: de um lado, o Ocidente tentando consolidar sua influência sobre o espaço pós-soviético; de outro, a Rússia afirmando suas “linhas vermelhas” e reivindicando papel central no equilíbrio de forças. O incômodo do Ocidente se deve não apenas ao autoritarismo interno russo, mas ao fato de que Moscou destrói a narrativa de um mundo já pacificado pela ordem liberal.
O elo com a China e a transição multipolar
O reposicionamento russo só adquire pleno sentido quando analisado em conjunto com a ascensão chinesa. Moscou e Pequim não têm o mesmo peso econômico: a China lidera no campo industrial, tecnológico e comercial, com uma base produtiva diversificada que vai de eletrônicos de consumo a semicondutores avançados. Já a Rússia apoia sua inserção internacional em dois pilares centrais — o setor energético e o complexo militar-industrial —, mas não se limita a isso.
A Rússia conserva uma base industrial relevante, herança do período soviético, que se manifesta em áreas de alta tecnologia e produção estratégica. O país é potência na indústria nuclear civil (a Rosatom lidera projetos de reatores em vários continentes), mantém posição destacada no setor aeroespacial, controla cadeias de produção metalúrgica e química, e consolidou-se como maior exportador mundial de trigo. Também possui polos de inovação digital, com empresas como Yandex e Kaspersky, que resistem à hegemonia das big techs ocidentais.
Esses avanços, no entanto, convivem com fortes limitações: dependência das exportações energéticas, vulnerabilidade diante das sanções ocidentais em setores de ponta (como semicondutores e maquinário avançado) e baixa competitividade em bens de consumo. É uma economia capitalista de base industrial concentrada em setores estratégicos, mas que carece de diversificação ampla.
A complementaridade entre Rússia e China decorre exatamente dessas diferenças. Pequim aporta peso econômico, tecnológico e industrial; Moscou contribui com energia, recursos naturais, poder militar e capacidades nucleares e aeroespaciais. Essa convergência se traduz em iniciativas como a Organização de Cooperação de Xangai, a coordenação nos BRICS e a cooperação energética. Juntas, desafiam a supremacia estadunidense e abrem espaço para que países do Sul Global busquem alternativas. O futuro da ordem internacional dependerá, em grande medida, da evolução dessa relação — marcada tanto por interesses convergentes quanto por tensões potenciais.
Putin: herói ou vilão?
Vladimir Putin não é herói nem vilão absoluto. Sua centralidade decorre menos de características pessoais e mais da posição objetiva que a Rússia ocupa: a de contestar a ordem unipolar e reabrir o terreno da disputa entre potências. A Rússia continua sendo um país capitalista, oligárquico e conservador, com enormes limites para sua classe trabalhadora. Mas sua capacidade de enfrentar a hegemonia estadunidense recoloca a questão da soberania no centro do debate internacional.
Para o Brasil e a América Latina, a lição é clara: a multipolaridade não é um presente automático, mas uma janela de oportunidades. Reconhecer as fissuras abertas pela disputa entre grandes potências deve servir para fortalecer projetos nacionais autônomos, baseados em soberania, desenvolvimento produtivo e justiça social. O desafio está em aproveitar a brecha histórica para construir alternativas próprias, sem cair na submissão ao imperialismo nem na ilusão de que outros polos resolverão nossos problemas.
* Carlos Lima é economista e sindicalista.

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