Reindustrialização e soberania produtiva: os avanços do governo Lula e os inimigos do desenvolvimento nacional
Por Carlos Lima*
O Brasil viveu, nas últimas décadas, um processo brutal de desindustrialização e regressão tecnológica. Esse processo não foi espontâneo: teve autores. Ele foi conduzido por governos neoliberais como os de Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e Jair Bolsonaro, que aplicaram uma agenda de abertura comercial desordenada, privatizações, desmonte da engenharia nacional e submissão à lógica dos mercados financeiros. Sob o pretexto de “modernização”, desmantelaram políticas industriais, enfraqueceram os bancos públicos e eliminaram qualquer projeto de desenvolvimento nacional soberano.
Cadeias produtivas foram interrompidas, a indústria de bens de capital foi deixada ao abandono, e a capacidade do Estado de planejar o desenvolvimento foi sabotada em nome da chamada “eficiência dos mercados”. Foi uma escolha política deliberada, subordinada aos interesses do capital financeiro, que empurrou o país para a periferia da economia global.
Ressalte-se que a luta por reindustrialização e soberania produtiva no Brasil se dá em meio a um contexto internacional profundamente adverso. As nações centrais, com destaque para os Estados Unidos sob a política de Donald Trump, vêm adotando políticas protecionistas agressivas, subsídios industriais bilionários e restrições ao acesso a tecnologias estratégicas. Sob o pretexto de segurança nacional, essas medidas buscam manter o domínio tecnológico global e impedir que países emergentes, como o Brasil, ascendam na cadeia produtiva internacional. A combinação de chantagens geoeconômicas, restrições comerciais e disputas tecnológicas impõe novos desafios à industrialização brasileira.
As críticas ao modelo neoliberal adotado anteriormente são legítimas e urgentes. Mas, desde 2023, o país vive uma inflexão importante. O governo Lula recolocou o papel do Estado no centro da estratégia de desenvolvimento. Iniciativas como a Nova Indústria Brasil, o novo PAC e os programas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação marcam uma retomada do planejamento industrial, do investimento público e da valorização da produção nacional.
Entretanto, os obstáculos ao avanço são imensos. E não são apenas técnicos ou orçamentários. O projeto de reconstrução do Brasil enfrenta inimigos poderosos da soberania nacional: a maioria do Congresso, dominada por interesses antinacionais; o sistema financeiro, comandado por rentistas e banqueiros que lucram com a paralisia produtiva; a grande mídia, comprometida com a defesa intransigente da ortodoxia econômica; e também as potências estrangeiras que impõem limites à autonomia produtiva dos países do Sul.
Uma política industrial que recoloca o Brasil no rumo do
desenvolvimento
Em janeiro de 2024 foi lançada a Nova Indústria Brasil (NIB), primeira grande política industrial estruturada desde os anos 2000. Ela
articula seis missões estratégicas — saúde, agroindústria, infraestrutura,
digitalização, bioeconomia e defesa — com metas concretas até 2033 e previsão
de R$ 300 bilhões em financiamento nos primeiros três anos. A coordenação
interministerial e a mobilização de instituições como BNDES e Finep expressam o retorno do Estado como planejador do desenvolvimento.
Além da NIB, o novo PAC investe em infraestrutura física e
social com foco na indução da produção nacional. Por sua vez, o MCTI retomou
programas estratégicos em áreas como semicondutores, biotecnologia,
inteligência artificial e ciência básica, ao mesmo tempo em que busca integrar
universidades e centros tecnológicos ao esforço de reindustrialização.
Essas ações representam avanços concretos em relação ao
passado recente. Retomam a ideia de que não há desenvolvimento sem base
produtiva, inovação nacional e financiamento público coordenado. Mas elas ainda
não superam por completo os limites herdados, especialmente no que diz respeito
à estrutura industrial brasileira.
São iniciativas que expressam a tentativa de reconstruir a
capacidade do Estado de planejar e induzir o crescimento, interrompendo a
lógica do “deixa o mercado resolver” que dominou as administrações anteriores.
Mas são movimentos que ocorrem sob cerco.
O cerco à soberania: quem sabota o desenvolvimento
O Brasil tenta avançar, mas enfrenta uma correlação de
forças profundamente desfavorável. O inimigo do desenvolvimento não é abstrato
— ele tem nome, endereço e porta-voz.
- A
maioria do Congresso Nacional, composta por bancadas fisiológicas,
ruralistas, fundamentalistas e ultraliberais, impede reformas
estruturantes, trava projetos de interesse nacional e age como correia de
transmissão dos interesses do capital financeiro e de grandes corporações
estrangeiras.
- Os
banqueiros e rentistas, que se beneficiam de um sistema de juros altos, da
dívida pública como fonte de lucro e da financeirização da economia, têm
todo interesse na manutenção do modelo atual — mesmo que isso signifique
crescimento medíocre, desemprego e desindustrialização.
- O
Banco Central, com “autonomia” formal, mas dependência total dos
interesses do mercado financeiro, age como bastião do rentismo. A
manutenção de juros reais estratosféricos é um obstáculo direto à retomada
da indústria, do crédito produtivo e do investimento público.
- A
mídia empresarial, que se apresenta como neutra e técnica, atua como
agente ideológico da ortodoxia. Desqualifica o papel do Estado, demoniza
qualquer política industrial e insiste, sem qualquer base empírica, que o
ajuste fiscal é o único caminho possível — mesmo com a economia estagnada
e a população empobrecida.
- As nações centrais, que sempre foram contra o desenvolvimento do Brasil, em especial os Estados Unidos, e que sob a nova gestão de Donald Trump intensificam o protecionismo comercial, restringem exportações tecnológicas e pressionam países do Sul a manterem-se em posição subordinada nas cadeias globais de valor. Por meio de tarifas, sanções e controles, tentam impedir que o Brasil reconstrua sua soberania produtiva e tecnológica.
Esses setores formam uma trava sistêmica ao avanço da
soberania nacional. Sem enfrentá-los politicamente, o país corre o risco de ver
seus melhores planos sabotados ou esvaziados.
A insuficiência na base produtiva: elo frágil da
soberania tecnológica
Um dos principais desafios que persistem é a fragilidade da
base produtiva nacional, sobretudo no que se refere à indústria de bens de
capital e à indústria metal-mecânica. Esse setor, historicamente responsável
por sustentar a produção de máquinas, ferramentas, sistemas industriais e
componentes estratégicos, segue desestruturado após décadas de abandono.
Mesmo com as medidas positivas adotadas pelo governo, ainda
há um vazio estratégico: a reconstrução da base produtiva nacional,
especialmente da indústria de bens de capital e da indústria metal-mecânica. A
política atual aposta corretamente em tecnologias emergentes e na transformação
digital, mas não garante ainda os meios para produzir essas tecnologias com
autonomia. O Brasil precisa dominar não apenas o uso, mas a fabricação de robôs
industriais, equipamentos médicos, turbinas, componentes eletrônicos e sistemas
automatizados. Isso exige, como pré-requisito, uma indústria metal-mecânica
nacional fortalecida. Não há soberania tecnológica sem capacidade de projetar,
fabricar e manter os meios de produção.
A indústria 4.0, tão celebrada por consultores e
tecnocratas, depende de aço, motores, ferramentas, sensores, estruturas — de um
parque industrial que o Brasil está deixando enferrujar. Não basta falar de
inovação e digitalização sem garantir que o país seja produtor e não apenas
operador de tecnologias, mas reconhecer o fortalecimento do setor de indústria
de base como condição material para viabilizar qualquer salto tecnológico com
soberania. Sem ele, a Indústria 4.0 será apenas uma plataforma operada no Brasil,
e não concebida e desenvolvida aqui.
O desafio do financiamento e a sabotagem monetária
Outra limitação importante está na política macroeconômica
ainda hegemonizada por visões ortodoxas. A reindustrialização exige crédito de
longo prazo, juros baixos, previsibilidade e coordenação entre as políticas
monetária, fiscal e industrial. Mas o Banco Central autônomo mantém juros
elevados, pressionando o custo de financiamento e desestimulando investimentos
produtivos.
Além disso, o sistema bancário privado prioriza aplicações
financeiras e crédito de curto prazo, enquanto o crédito produtivo segue
concentrado em poucos instrumentos públicos. Isso limita a escala das
iniciativas e fragiliza a articulação entre inovação e produção.
Enquanto o Banco Central mantiver juros reais elevadíssimos,
o custo do crédito produtivo seguirá inviabilizando investimentos industriais.
O BNDES e a Finep, com outras instituições, fazem esforços importantes, mas enfrentam
restrições fiscais e monetárias impostas por uma lógica macroeconômica que
privilegia a estabilidade dos especuladores em detrimento do crescimento
nacional.
Uma política de reindustrialização exige uma estratégia de
crédito de Estado, coordenada, de longo prazo, com metas produtivas e
instrumentos públicos robustos. Sem isso, o capital continuará fluindo para o
rentismo, e não para a produção.
Reindustrializar é decisão política, não técnica
A soberania nacional não será alcançada com neutralidade.
Não basta boa técnica, nem boas intenções. O Brasil tem quadros técnicos,
universidades, empresas públicas, capital humano e mercado interno. O que falta
é construir um projeto nacional que integre essas forças com foco na
reconstrução da capacidade de produzir com soberania. É preciso disputar o
poder com os que querem manter o país preso à lógica da dependência. Nesse
processo, o fortalecimento dos BRICS como alternativa à ordem global dominada
pelas potências centrais representa um caminho estratégico para ampliar a
cooperação tecnológica, o financiamento à industrialização e a autonomia
produtiva dos países em desenvolvimento. O Brasil precisa utilizar sua presença
nos BRICS como instrumento ativo de promoção de sua indústria nacional e de
construção de um novo sistema internacional mais justo e multipolar.
Reindustrializar exige:
·
Retomar e ampliar a indústria de base;
·
Integrar ciência e tecnologia ao sistema
produtivo;
·
Articular educação técnica, engenharia e
inovação aplicada;
·
Utilizar o poder de compra do Estado como
indutor da indústria nacional;
·
Criar condições reais para a formação de uma
nova classe trabalhadora industrial, com direitos, qualificação e futuro;
·
Planejar com protagonismo do Estado;
·
Romper com o rentismo e sua hegemonia sobre a
política monetária;
·
Enfrentar o Congresso antinacional;
·
Democratizar a mídia e combater sua colonização
ideológica;
· Ampliar a integração Sul-Sul como estratégia de cooperação industrial, tecnológica e científica entre países periféricos;
· Adotar medidas de defesa comercial e tecnológica frente ao protecionismo e à pressão das potências centrais.;
Soberania se constrói com produção, consciência e luta
O governo Lula aponta na direção correta. Recoloca o
planejamento industrial, a ciência e a produção nacional como prioridades. Mas
isso só se consolidará com organização popular, enfrentamento político e
ruptura com os interesses que impedem o Brasil de avançar. A Nova Indústria
Brasil, os PACs e os programas do MCTI apontam na direção certa. Mas é preciso
aprofundar esse caminho, corrigir suas insuficiências e ousar mais.
A soberania se constrói no chão da fábrica, na pesquisa
aplicada, na escola técnica, no crédito público — e na coragem de enfrentar os
inimigos internos que lucram com a nossa estagnação. A reindustrialização não
virá apenas por decretos, nem por promessas digitais. Ela exige base produtiva,
crédito público, integração entre setores, ruptura com o rentismo e uma visão
estratégica de país. Significa recuperar nossa capacidade de decidir o que
produzimos, como produzimos e para quem produzimos.
“O futuro do Brasil não será importado. Será construído
com aço, ciência, trabalho e soberania.”
*Carlos Lima é economista, bancário,
dirigente da CTB-RJ e coordenador do CES (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho - Núcleo do
Rio de Janeiro)
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