O enigma dos bilhões da CEDAE: promessas rasgadas, serviços precários, uso político do dinheiro público e descumprimento das obrigações contratuais
Por Carlos Lima*
Em abril de 2021, o Governo do Estado do Rio de Janeiro realizou um dos maiores leilões de saneamento básico da história do Brasil: a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), que arrecadou R$ 22,6 bilhões. Sob o pretexto da modernização, da universalização do acesso à água e do fim do esgoto a céu aberto, a operação foi vendida à população como uma solução definitiva para os históricos problemas de saneamento no estado.
Mas três anos depois, o que se vê é o oposto do prometido: tarifas abusivas, aumento explosivo de reclamações, obras não entregues, obrigações contratuais descumpridas e um rastro de dúvidas sobre o destino do dinheiro público, alimentando suspeitas de uso político e eleitoral dos recursos em favor do então governador Cláudio Castro (PL).
A bilionária venda da água pública
O leilão, realizado na B3 (Bolsa de Valores de São Paulo), dividiu o estado em quatro blocos operacionais:
• Bloco 1 – arrematado pela Águas do Rio (Grupo Aegea), cobre grande parte da capital (Zona Norte e Oeste) e oito municípios da Baixada Fluminense.
• Bloco 2 – entregue à Iguá Saneamento, ligada ao fundo canadense CPPIB, que passou a operar em áreas da Zona Sul, Centro e Zona Norte da capital, além de três municípios do interior.
• Bloco 4 – assumido pela Águas do Brasil, responsável por Niterói, São Gonçalo, Maricá, Itaboraí e municípios da região leste metropolitana.
• Bloco 3 – não teve interessados na primeira rodada. Foi leiloado posteriormente para o mesmo consórcio do Bloco 4, por R$ 2,2 bilhões.
As concessionárias se comprometeram com investimentos de R$ 30 bilhões até 2033, com metas de universalização da água (99%) e do esgoto (90%), em consonância com o novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020).
Zona Oeste Mais: a PPP esquecida que agrava o caos do saneamento
Antes mesmo do leilão da CEDAE, a cidade do Rio de Janeiro já convivia com um modelo de gestão privada no saneamento. Desde 2012, está em vigor uma Parceria Público-Privada (PPP) entre a Prefeitura do Rio e a empresa Zona Oeste Mais, então chamada Foz Águas 5 (ligada à BRK Ambiental), para atuar em 21 bairros da Zona Oeste, como Campo Grande, Santa Cruz, Bangu e Sepetiba.
Essa PPP previa a coleta e o tratamento de esgoto, enquanto a CEDAE seguia responsável pelo abastecimento de água. Com a entrada da Águas do Rio após o leilão, criou-se uma situação de sobreposição e conflito de competências. Hoje, as duas empresas atuam nas mesmas regiões, gerando:
• Cobranças indevidas e duplicadas
• Desinformação da população sobre a quem recorrer
• Falta de investimentos estruturais
• Metas não cumpridas por ambas as operadoras
Segundo o TCM-RJ e o MP-RJ, a Zona Oeste Mais não alcançou a cobertura contratada, e o esgoto continua a céu aberto em diversas comunidades. Mesmo assim, o contrato permanece vigente até 2042, sem que a Prefeitura do Rio ou o Governo do Estado tenham apresentado plano de transição ou integração.
Serviços precários e aumento de queixas
Passados os primeiros anos, o que se registra é uma explosão de reclamações por parte dos consumidores. Segundo o Procon-RJ, apenas nos dois primeiros meses de 2023 houve um aumento de 454% nas queixas contra as concessionárias em comparação com o mesmo período de 2022. Os principais motivos envolvem interrupções no fornecimento, contas abusivas, vazamentos, esgoto a céu aberto e atendimento precário.
Bairros inteiros da Zona Oeste do Rio, como Campo Grande, Santa Cruz e Bangu, continuam convivendo com sistemas obsoletos, falta d’água constante e ausência de obras prometidas. O mesmo cenário se repete em diversos municípios da Baixada Fluminense. Moradores relatam que a situação, antes ruim, piorou depois da privatização.
Descumprimento das obrigações contratuais
Além das falhas perceptíveis no dia a dia da população, relatórios técnicos e observatórios independentes apontam que as concessionárias vêm descumprindo metas contratuais básicas.
De acordo com avaliação do Observatório das Metrópoles (UFRJ), publicada em 2023, as metas intermediárias previstas para os primeiros dois anos da concessão não foram integralmente cumpridas. As empresas não investiram o volume previsto no ritmo anunciado, especialmente em áreas periféricas e comunidades populares, que seguem sem redes de esgoto ou com abastecimento irregular.
O levantamento identificou que:
• A Águas do Rio não atingiu a meta de substituição e ampliação de redes em várias zonas da Baixada.
• A Iguá atrasou cronogramas previstos em contratos, como obras em Nova Iguaçu e Miguel Pereira.
• Nenhuma das concessionárias alcançou a meta de ampliação da tarifa social para 5% da população atendida, conforme o edital.
Apesar disso, o poder concedente (Estado do RJ) não aplicou penalidades previstas em contrato, como multas ou medidas de correção. Pelo contrário, em 2024, o governo assinou um acordo que suspende a exigência de metas até a “correção do edital”, aprofundando a percepção de conivência institucional com o descumprimento contratual.
Recursos como moeda política e eleitoral
Dos R$ 22,6 bilhões arrecadados, R$ 14,47 bilhões ficaram com o governo estadual, R$ 7,68 bilhões foram repassados a 29 municípios e R$ 522 milhões foram destinados ao Instituto Rio Metrópole. O governo estadual anunciou projetos estruturantes como a despoluição da Baía de Guanabara (R$ 2,6 bi), a recuperação da Bacia do Guandu (R$ 2,9 bi) e obras no Complexo Lagunar da Barra (R$ 250 milhões). Contudo, nenhuma dessas intervenções foi concluída, e poucas tiveram suas etapas documentadas publicamente.
Mais grave ainda: diversas reportagens e documentos de órgãos de controle apontam que os recursos foram utilizados para fins políticos. Segundo a revista CartaCapital, o governo Cláudio Castro utilizou os repasses como moeda de barganha para consolidar alianças com prefeitos em 2022, ano eleitoral. Os dados revelam que os maiores repasses foram feitos a aliados do governador, especialmente em cidades da Baixada Fluminense e interior.
O resultado eleitoral não tardou: Cláudio Castro foi reeleito no primeiro turno com expressiva votação nas regiões que receberam maiores volumes de recursos. Já as finanças estaduais, que registraram superávit de R$ 12,94 bilhões em 2022, apresentaram queda para R$ 5,04 bilhões em 2023, e a previsão de 2024 passou a indicar um déficit de R$ 8,5 bilhões.
O papel do BNDES e o financiamento à Águas do Rio
Além do valor arrecadado no leilão, a concessionária Águas do Rio recebeu um financiamento de R$ 19,3 bilhões do BNDES, ainda durante o governo Bolsonaro, em condições consideradas excepcionais e questionáveis por especialistas. O contrato foi fechado sem exigência de garantias corporativas e com cobertura de risco para a emissão de debêntures.
A operação foi criticada por entidades de controle e por organizações sociais como uma ação de fomento público voltada para garantir o lucro privado, em vez de assegurar infraestrutura para o interesse coletivo. O favorecimento ao grupo Aegea, maior operador privado de saneamento do país, evidencia a natureza concentradora e rentista da política adotada no setor.
Falta de transparência e controle
Para responder às crescentes críticas, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ) lançou em dezembro de 2022 a plataforma "Recursos CEDAE", com o objetivo de permitir o monitoramento dos repasses feitos aos municípios. No entanto, a plataforma não contém informações detalhadas sobre os projetos realizados, nem sobre os impactos efetivos dos investimentos.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) também recomendou que os recursos fossem aplicados com planejamento e transparência, mas nenhuma auditoria ampla foi divulgada até hoje, e nenhum prefeito foi responsabilizado pela ausência de obras ou investimentos.
O papel estratégico da CEDAE como empresa pública
A CEDAE continua existindo como empresa pública estadual. Embora tenha perdido a operação de distribuição de água e coleta de esgoto em grande parte da Região Metropolitana e vários municípios após o leilão, a companhia segue responsável pela captação, tratamento e fornecimento de água tratada para as concessionárias privadas, além de operar diretamente em diversos municípios do interior não abrangidos pela concessão.
Mais do que sua função operacional atual, a CEDAE representa um ativo estratégico do Estado: detém infraestrutura, conhecimento técnico acumulado, corpo funcional qualificado e capacidade de articulação com políticas públicas de longo prazo.
Antes da privatização, a CEDAE cumpria um papel central na formulação e execução da política estadual de saneamento, com presença institucional, integração com os municípios e possibilidade concreta de controle social e pressão política. Como empresa pública, era possível cobrar metas, exigir melhorias e debater com transparência os rumos do saneamento no Rio de Janeiro.
Hoje, mesmo esvaziada, a CEDAE segue sob ataque: demissões, terceirizações e tentativa de desmonte institucional silencioso. Mas sua permanência pública preserva uma base real para a luta pela reestatização, pela retomada do controle público sobre um bem essencial, e pela reconstrução de um projeto de saneamento comprometido com a universalização e com o povo.
Neste cenário, destaca-se ainda o papel da AGENERSA (Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro), cuja atuação tem sido amplamente questionada. Mesmo diante de descumprimentos contratuais, interrupções de serviço, tarifas abusivas e ausência de investimentos, a agência não aplicou multas ou penalidades significativas às concessionárias. Em vez de atuar como fiscalizadora rigorosa do interesse público, a AGENERSA vem se comportando como aliada silenciosa dos grupos privados, contribuindo para o enfraquecimento da regulação e para o esvaziamento do controle público sobre o setor.
Vozes da resistência
Sindicatos, movimentos populares e especialistas têm denunciado os efeitos da privatização. Em nota, o Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento e Meio Ambiente (Sintsama-RJ) declarou:
“Cláudio Castro usou a água do povo como moeda de troca para se manter no poder. Os recursos que deveriam estar nas comunidades levando esgoto tratado e água limpa viraram tapete de inauguração eleitoreira.”
Roberto Carlos Oliveira, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), foi direto ao ponto:
“A privatização da CEDAE é um modelo de exclusão. Águas do Rio é símbolo da mercantilização da água. O povo paga caro para receber esgoto, quando recebe.”
Sem água, sem esgoto e sem voz
Três anos após a privatização da CEDAE, a realidade mostra um cenário de desigualdade ampliada, serviços instáveis, descumprimento de metas, lucros assegurados para os grupos privados, e nenhuma transparência sobre a aplicação dos recursos públicos. A água — bem comum e direito universal — foi transformada em mercadoria, gerando lucros para poucos e insegurança para milhões.
A CEDAE, apesar dos ataques e do esvaziamento institucional, mantém-se como empresa pública estratégica. Sua preservação é hoje uma trincheira de resistência contra a entrega total do saneamento ao capital privado. Reestruturá-la e revalorizá-la significa abrir caminho para a reestatização plena do serviço, sob controle público, social e transparente.
A promessa de modernização e universalização virou propaganda política. Enquanto isso, as comunidades mais pobres seguem esquecidas, sem água, sem esgoto e sem voz.
Mas a bandeira da reestatização da CEDAE permanece viva. E mais necessária do que nunca.
Fontes consultadas:
• Agência Brasil
• CartaCapital
• Brasil de Fato
• Observatório das Metrópoles (UFRJ)
• Procon-RJ
• Folha de S.Paulo
• CNN Brasil
• MP-RJ – Painel “Recursos CEDAE”
• TCE-RJ
• Sintsama-RJ
• MAB
• Sites oficiais das concessionárias Águas do Rio, Iguá Saneamento, Águas do Brasil e Zona Oeste Mais
*Carlos Lima é economista e dirigente da CTB-RJ e do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro
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