Feminismo Emancipacionista e o Enfrentamento do Machismo: Para Além da Moralização

Por Carlos Lima, economista

Resumo
O presente artigo discute o enfrentamento do machismo na sociedade moderna sob a ótica do feminismo emancipacionista. Rejeitando abordagens moralizantes centradas na reeducação individual dos homens, propõe uma análise estrutural que articula gênero, classe e reprodução social. O texto parte da crítica à personalização da opressão de gênero, aprofunda o entendimento do machismo como componente funcional do capitalismo e propõe caminhos para o fortalecimento da luta popular por transformação real das condições de vida das mulheres.

Por que não basta “ensinar o homem a não ser machista”

O debate público contemporâneo sobre o machismo frequentemente se limita à esfera comportamental, adotando estratégias moralizantes que buscam “ensinar homens a não serem machistas”. Embora essa abordagem possa parecer progressista, ela oculta a natureza estrutural da opressão de gênero e acaba por despolitizar uma luta que exige transformação profunda das bases sociais e econômicas da sociedade.

Essa perspectiva desmobiliza a ação coletiva e transfere a responsabilidade da opressão para o indivíduo, ignorando que o machismo é reproduzido por estruturas institucionais, culturais e econômicas, como o mercado de trabalho, a divisão sexual do trabalho, o sistema educacional e, de forma decisiva, os meios de comunicação de massa.

O feminismo emancipacionista: entre gênero, classe e libertação coletiva

O feminismo emancipacionista é uma corrente que articula a luta das mulheres à transformação estrutural da sociedade, rejeitando tanto a acomodação liberal quanto o identitarismo fragmentário. Inspirado nas elaborações marxistas de Alexandra Kollontai, Lise Vogel, Silvia Federici e, no contexto brasileiro, em Ana Rocha e a prática política da União Brasileira de Mulheres (UBM), esse feminismo entende que a opressão das mulheres está inserida na totalidade das relações de produção e reprodução capitalistas.

No artigo “A evolução das perspectivas de gênero no mundo do trabalho” (2020), Ana Rocha aprofunda a análise da divisão sexual do trabalho como expressão da lógica de dominação do capital, mostrando como o patriarcado e o sistema econômico se reforçam mutuamente. Ela demonstra que a desigualdade de gênero não é resquício de atraso, mas elemento funcional à acumulação capitalista, o que impõe ao feminismo uma estratégia que vá além da busca por inclusão formal. Sua abordagem reafirma que o combate à opressão das mulheres deve estar conectado a um projeto de transformação social mais amplo, ancorado na crítica à exploração, à mercantilização da vida e à ideologia patriarcal dominante.

Segundo relatório da Oxfam (2020), mulheres e meninas realizam mais de 12,5 bilhões de horas diárias de trabalho de cuidados não remunerado, o que representa uma contribuição econômica estimada em pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano — valor que excede o da indústria global de tecnologia. Este dado mostra como o sistema capitalista se apoia na exploração invisível do trabalho feminino, reforçando a tese de que a opressão de gênero cumpre função econômica.

Vogel (2013) argumenta que o capitalismo depende não apenas da extração de mais-valia no processo produtivo, mas também da reprodução cotidiana da força de trabalho, majoritariamente realizada por mulheres em atividades não remuneradas. Essas tarefas, invisibilizadas pelo mercado e naturalizadas pelas ideologias patriarcais, são fundamentais para a manutenção do sistema.

A prática sindical brasileira também oferece exemplos que evidenciam essa perspectiva. O caso do Coletivo Margaridas, vinculado ao Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro (SECRJ), ilustra a atuação concreta do feminismo emancipacionista. Criado em 2015, o coletivo rompe com a lógica tradicional dos departamentos femininos nos sindicatos e atua com foco na formação política, na organização de base e na formulação de reivindicações específicas para as comerciárias, como a igualdade salarial, o combate ao assédio moral e sexual e a ampliação das políticas públicas voltadas à dignidade do trabalho feminino. A experiência é orientada pelas ideias de Ana Rocha e expressa, na prática, o compromisso com uma luta feminista articulada à consciência de classe e de raça, fortalecendo a ação coletiva das mulheres trabalhadoras.

O machismo como estrutura: ideologia e funcionalidade social

O machismo, nessa perspectiva, não é um conjunto de atitudes individuais, mas sim um mecanismo ideológico estruturante, que cumpre funções sociais essenciais ao sistema capitalista:

  1. Naturaliza a desigualdade: o machismo constrói a ideia de que os papéis sociais atribuídos às mulheres decorrem de sua natureza, ocultando a construção histórica dessas funções.

  2. Barateia a reprodução da força de trabalho: ao manter o cuidado e o trabalho doméstico sob responsabilidade das mulheres, o capital reduz seus custos com salários e benefícios.

  3. Fragmenta a classe trabalhadora: ao criar hierarquias internas entre homens e mulheres, o machismo enfraquece a solidariedade e a organização coletiva.

Outro aspecto fundamental é o papel da mídia na reprodução de estereótipos e na naturalização do machismo. A publicidade, os programas de entretenimento e o noticiário contribuem para consolidar representações sexistas, reforçando papéis subordinados para as mulheres e legitimando condutas violentas ou discriminatórias. A mídia atua, portanto, como aparelho ideológico que sustenta a hegemonia patriarcal, dificultando a formação de uma consciência crítica sobre a desigualdade de gênero.

Essa estrutura desigual se materializa em dados concretos no Brasil: segundo o IBGE (2022), as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais a afazeres domésticos e cuidados de pessoas, enquanto os homens dedicam 11 horas. Além disso, 38% das mulheres estão em ocupações informais, o que compromete sua proteção social e acentua a precarização.

Em relação à violência, o Atlas da Violência 2023 indica que 4.580 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2022, sendo que mais de 66% dessas vítimas eram mulheres negras. Isso confirma que o machismo se manifesta de forma interseccional, atingindo com maior força mulheres da classe trabalhadora e da população negra.

O enfrentamento do machismo como transformação social

A crítica emancipacionista propõe outras formas de enfrentamento ao machismo, baseadas na construção de uma nova sociabilidade. Entre as estratégias de transformação estrutural estão:

  • A socialização do cuidado por meio de políticas públicas universais e serviços comunitários;

  • A reorganização da jornada de trabalho com base na igualdade de gênero e justiça social;

  • A inclusão de homens e mulheres na formação crítica, não como alvos de doutrinação moral, mas como sujeitos de processos coletivos de transformação;

  • O fortalecimento de organizações de base – sindicatos, movimentos populares e coletivos feministas com inserção territorial.

Ana Rocha, dirigente da UBM, sintetiza esse programa ao afirmar: "A luta feminista não é contra os homens, mas contra as estruturas que nos colocam em posições de desigualdade. A libertação da mulher é parte da libertação de todo o povo".

Segundo dados do Ipea (2021), políticas públicas de ampliação de creches e educação infantil impactam diretamente a autonomia econômica das mulheres e podem reduzir em até 20% a diferença de renda entre os gêneros em famílias de baixa renda. Isso reforça que enfrentar o machismo é também ampliar direitos sociais e econômicos.

O risco do moralismo e a importância da consciência de classe

O moralismo – entendido como a atribuição exclusiva da responsabilidade a sujeitos individuais – é funcional ao neoliberalismo, pois desloca a atenção da estrutura para a conduta. Nesse sentido, “ensinar o homem a não ser machista” pode se converter em uma falsa solução, que ignora os mecanismos institucionais, legais, culturais, midiáticos e econômicos que reproduzem o patriarcado.

A crítica emancipacionista propõe, em seu lugar, a construção de uma consciência crítica e de classe, que permita compreender o lugar da opressão de gênero dentro do sistema de dominação. Isso não exclui a necessidade de responsabilizar indivíduos por práticas violentas, mas recoloca o centro da luta na transformação da sociedade e não na pedagogia moral do comportamento.

Nesse processo, é fundamental o combate sistemático à violência contra a mulher, em suas múltiplas formas — física, sexual, psicológica, institucional, simbólica e midiática — como elemento concreto de enfrentamento ao machismo. Tal combate exige o fortalecimento de políticas públicas efetivas, mas também o investimento em processos permanentes de formação crítica voltados para homens e mulheres, que envolvam escolas, sindicatos, movimentos sociais, comunidades e também uma crítica ativa ao papel da mídia, com o objetivo de construir coletivamente uma nova cultura e novas relações sociais fundadas na igualdade, no respeito e na solidariedade.

Assim, não se trata de “reeducar” homens como indivíduos isolados, mas de inseri-los em processos coletivos de transformação de subjetividades e práticas sociais, com base na crítica às estruturas patriarcais herdadas e na construção de novas formas de convívio e organização social.

Emancipação como projeto político e cultural

O enfrentamento do machismo não será eficaz se permanecer limitado ao campo da moralidade individual. A perspectiva emancipacionista exige um deslocamento da crítica para o nível estrutural, articulando gênero, classe, reprodução social e crítica aos meios de comunicação. Com base em dados concretos sobre desigualdade de trabalho, violência e acesso a direitos, o artigo demonstrou que a transformação da vida das mulheres passa por ações coletivas, enraizadas na organização popular, na ação política e na superação do sistema que sustenta e reproduz a opressão de gênero.

Nesse horizonte, o combate à violência contra as mulheres não pode ser entendido apenas como uma política reativa ou emergencial, mas como parte de um projeto emancipador que enfrente as práticas machistas naturalizadas e herdadas historicamente. Isso exige a construção de processos formativos permanentes, voltados tanto para mulheres quanto para homens, orientados pela crítica ao patriarcado, à ideologia veiculada pela mídia e pela proposição de uma nova sociabilidade.

Somente por meio da organização popular, da ação coletiva e da formação crítica de consciência será possível avançar na construção de uma sociedade justa e igualitária. Superar o machismo, portanto, não é apenas uma tarefa moral ou pedagógica, mas uma exigência estratégica de qualquer projeto de emancipação social.


Palavras-chave: Feminismo emancipacionista; machismo estrutural; crítica ao moralismo; reprodução social; transformação social.

Referências

  • FRASER, Nancy. Fortunas do Feminismo. São Paulo: Boitempo, 2013.

  • KOLLONTAI, Alexandra. A Nova Mulher e a Moral Sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

  • ROCHA, Ana. Textos e entrevistas disponíveis na União Brasileira de Mulheres (UBM).

  • ROCHA, Ana. Coletivo Margaridas: a luta das comerciárias por direitos e dignidade. Fundação Maurício Grabois, 30 mar. 2025. Disponível em: https://grabois.org.br/2025/03/30/coletivo-margaridas-luta-comerciarias-rj/. Acesso em: 16 maio 2025.

  • ROCHA, Ana. A evolução das perspectivas de gênero no mundo do trabalho. Princípios, v. 39, n. 159, p. 151–179, 2020. DOI: https://doi.org/10.4322/principios.2675-6609.2020.159.007. Disponível em: https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/13. Acesso em: 16 maio 2025.

  • VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket, 2013.

  • FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução. São Paulo: Elefante, 2019.

  • OXFAM. Tempo de Cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e a crise da desigualdade global. 2020.

  • IBGE. Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil. 2022.

  • ATLAS DA VIOLÊNCIA. IPEA/FBSP. 2023.

  • IPEA. Políticas Públicas e Desigualdade de Gênero. Brasília, 2021.

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