Por: Carlos Lima – Economista
A recente ofensiva do governo dos Estados Unidos contra o
Brasil, com a imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros e a
inclusão do ministro Alexandre de Moraes em uma lista de sanções unilaterais,
marca um novo e perigoso capítulo nas relações entre centro e periferia no
sistema internacional. Longe de serem apenas reações políticas episódicas, as
medidas revelam o uso explícito do poder econômico como instrumento de coerção
externa. Na prática, o governo Trump tenta transformar tarifas e sanções em
armas diplomáticas para defender seus aliados políticos no Brasil e enfraquecer
instituições democráticas que resistem ao avanço autoritário da
extrema-direita.
Ao mirar o Supremo Tribunal Federal e o governo Lula, os EUA
atingem, na verdade, a economia e a soberania brasileiras como um todo. A
resposta do Brasil precisa ser firme, articulada e estrutural. É hora de
revisar a dependência do sistema financeiro internacional dominado pelo dólar,
fortalecer os BRICS, investir em alternativas soberanas de financiamento e
comércio, e utilizar todos os instrumentos fiscais, regulatórios e industriais
à disposição do Estado para proteger seus interesses nacionais.
O impacto real da tarifa: quem perdeu com a jogada de
Trump
Apesar de o decreto assinado por Donald Trump prever a
tarifa de 50% sobre importações brasileiras, ele excluiu 694 produtos da lista,
preservando setores estratégicos para os EUA como energia, celulose, minerais
primários e peças de aviação. A medida foi calibrada para manter o
funcionamento de cadeias produtivas críticas dos EUA, mas os efeitos sobre o
Brasil são expressivos. Segundo dados do ComexStat e da Secex (Ministério do
Desenvolvimento), em 2024 o Brasil exportou cerca de US$ 36 bilhões para os
EUA, com destaque para carnes (US$ 4,3 bi), minério de ferro e produtos
siderúrgicos (US$ 6,2 bi), café (US$ 1,8 bi), celulose (US$ 2,9 bi) e suco de
laranja (US$ 1,1 bi). Estima-se que US$ 15 a 18 bilhões ainda estejam
sujeitos à nova tarifa.
Os setores mais afetados incluem a agropecuária
(especialmente carnes e café), siderurgia, mineração processada e produtos
industrializados de menor valor agregado. Esses setores estão concentrados em
estados como São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e Paraná — todos
governados por aliados da oposição a Lula. Ou seja, paradoxalmente, a
retaliação contra o STF e o governo federal acabou atingindo duramente a base
econômica e territorial do bolsonarismo.
Além da perda de competitividade, há o risco de excedente
interno de produtos que perderam mercado nos EUA, provocando queda nos preços
internos e, em alguns casos, risco de desmobilização de linhas produtivas. Já
se observam sinais de redução de preços no varejo de café, carne bovina e
frango, o que, embora beneficie os consumidores, impacta a receita dos
produtores e a arrecadação nos estados exportadores.
A sanção contra Moraes e a tentativa de desestabilizar o
sistema jurídico brasileiro
A inclusão do ministro Alexandre de Moraes na lista de
sanções da Lei Global Magnitsky é um gesto sem precedentes. Trata-se da
primeira vez em que um ministro de Suprema Corte de um país democrático é
sancionado individualmente por um governo estrangeiro. As acusações de abuso de
poder e censura de redes sociais, formuladas pelo Departamento do Tesouro
americano com base em alegações da direita brasileira, são uma clara tentativa
de interferência nos assuntos internos do país.
A sanção, apesar de não ter efeito jurídico no Brasil, tem
peso simbólico e político. Visa enfraquecer o sistema de justiça que investiga
Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, ataques à democracia e
organização criminosa. A resposta do governo Lula, do STF e do Itamaraty foi
firme: não se aceita que governos estrangeiros ditem regras sobre instituições
brasileiras. O próprio presidente Lula declarou que "o Brasil não se curva
a ameaças", e o Congresso Nacional, inclusive setores da oposição, se posicionou
em defesa da soberania nacional.
No entanto, o episódio revela a importância de construir
blindagens institucionais e econômicas contra esse tipo de pressão. Não basta
repudiar a sanção. É preciso agir para reduzir a exposição do Brasil aos
instrumentos de coerção global dos EUA.
Medidas propostas: entre o necessário e o urgente
O governo Lula informou que há “contingências preparadas”.
Isso é importante. Mas diante da gravidade do ataque, a resposta precisa
ultrapassar o plano defensivo e entrar na arena estratégica. A seguir, proponho
medidas em dois planos: o estrutural (de longo alcance) e o combativo (de
efeito imediato), que devem ser articulados num programa nacional de soberania
econômica.
1. Eixos estruturais:
soberania econômica e integração alternativa
Adesão ao sistema de
pagamentos CIPS
O CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), desenvolvido pela China como
alternativa ao SWIFT, já opera com mais de 1.400 bancos em 100 países. Se o
Brasil aderir ao CIPS, poderá realizar transações em yuan ou moedas locais,
reduzindo a dependência do dólar e o risco de bloqueio unilateral de ativos e
fluxos financeiros. Isso abriria caminho para acordos comerciais com países dos
BRICS, da Ásia e da África com maior autonomia.
Ampliação do uso do UnionPay
O UnionPay é um sistema de pagamentos chinês que já ultrapassa o Visa em número
de cartões emitidos globalmente. Sua implantação no Brasil, com estímulo
regulatório e bancário, pode reduzir o monopólio das bandeiras americanas e
facilitar o uso de moedas alternativas ao dólar.
Fortalecimento dos BRICS e do
Novo Banco de Desenvolvimento
O NDB pode se tornar um pilar do novo arranjo multipolar. Para isso, é preciso
que os países-membros, incluindo o Brasil, capitalizem o banco, ampliem a
emissão de crédito em moedas locais e estabeleçam um fundo de estabilização do
comércio internacional. Essa política é vital para proteger o Brasil de choques
cambiais e comerciais vindos do Atlântico Norte.
Acordos bilaterais de
compensação comercial
O Brasil pode firmar acordos diretos com países como Índia, Rússia, Irã,
Argélia, África do Sul e Indonésia, trocando excedentes de carne, café e grãos
por fertilizantes, medicamentos, tecnologia e energia. Esse modelo — já testado
na década de 1980 com países do Leste Europeu — evita o uso de moeda forte,
reduz o déficit externo e amplia mercados alternativos.
2. Eixos combativos: taxar,
regular e proteger
Tributação das Big Techs
Empresas como Google, Apple, Amazon e Meta lucram bilhões no Brasil, mas pagam
alíquotas efetivas muito inferiores às empresas nacionais. A criação de um
imposto digital progressivo — como já ocorre na França, Índia e União Europeia
— corrigiria essa distorção e reforçaria a arrecadação nacional.
Revisão do sistema de patentes
O Brasil pode usar as flexibilidades do Acordo TRIPS da OMC para quebrar
patentes em áreas essenciais, como fármacos, insumos agrícolas e tecnologias de
transição energética. Isso não é ruptura legal: é direito soberano. Além disso,
reduz a dependência de multinacionais e estimula a inovação nacional.
Controle sobre capital
especulativo
A entrada descontrolada de capital de curto prazo gera valorização artificial
do real e instabilidade. Um IOF seletivo pode conter essa volatilidade. É o que
países como Coreia do Sul e China fazem para preservar sua autonomia monetária.
Regulação da informação e
soberania digital
A proteção dos dados dos cidadãos brasileiros e o combate à manipulação
algorítmica por empresas estrangeiras são tarefas urgentes. É preciso aplicar
com rigor a LGPD, fortalecer a autoridade nacional de proteção de dados e
estabelecer critérios para o uso de inteligência artificial no território
nacional.
O que está em jogo: independência ou tutela?
O que está em jogo nesta crise não é apenas o direito do
Brasil de exportar carne ou de julgar seus próprios criminosos. É algo mais
profundo: a possibilidade de existir como nação autônoma, capaz de formular sua
política externa, defender suas instituições e decidir seu projeto de
desenvolvimento.
A sanção a Moraes e as tarifas de Trump não são casos
isolados. Elas se inscrevem numa longa tradição de imposição unilateral de
interesses do imperialismo sobre países do Sul. A diferença é que, agora, o
Brasil dispõe de instrumentos, alianças e massa crítica para reagir. Mas é
preciso vontade política.
A agressão de Trump ao Brasil revela a urgência de construir
um novo modelo de desenvolvimento ancorado na soberania econômica, na justiça
tributária e na integração multipolar. As medidas já aventadas — como adesão ao
CIPS, fortalecimento dos BRICS e diversificação comercial — são bem-vindas, mas
precisam ser acompanhadas de ações fiscais, tecnológicas e regulatórias que
desafiem diretamente os mecanismos de dominação externa.
Mais do que resistir, o Brasil precisa afirmar um novo
protagonismo. Não se trata apenas de proteger o presente, mas de construir o
futuro. O caminho da submissão já conhecemos. É hora de seguir o caminho da
soberania.
Comentários
Postar um comentário