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Reindustrializar com os Pés no Chão: Por que a Base Metal-Mecânica é Essencial para o Brasil (parte II)

Por Carlos Lima*

No primeiro artigo desta série, mostramos como mitos tecnológicos obscurecem a necessidade real de reconstruir a base industrial brasileira. Agora, avançamos na análise ao apontar um setor-chave cuja ausência no centro da política industrial compromete qualquer ambição de desenvolvimento soberano: a indústria metal-mecânica.

O programa Nova Indústria Brasil (NIB) representa um passo necessário na reconstrução da capacidade produtiva nacional. Após décadas de políticas liberais, desmonte industrial e especialização regressiva na exportação de commodities, o país volta a falar em reindustrialização. Mas para que esse esforço seja bem-sucedido, é preciso enfrentar uma omissão que compromete todo o projeto: a ausência de centralidade estratégica para a indústria metal-mecânica.

Abaixo, detalhamos por que este setor é fundamental, onde estão as insuficiências do atual programa e que caminhos podem recolocar o Brasil nos trilhos de uma industrialização soberana.

1. O que é a indústria metal-mecânica e por que ela importa

A indústria metal-mecânica é responsável pela fabricação dos meios de produção — as máquinas, ferramentas e sistemas físicos que possibilitam todas as demais atividades industriais. Sem ela, não existe infraestrutura industrial nacional, tampouco capacidade de desenvolver tecnologia autônoma. O setor compreende, entre outros:

  • Máquinas-ferramenta: tornos, fresadoras, prensas, centros CNC, entre outros equipamentos usados para moldar, cortar, montar e fabricar componentes industriais.
  • Componentes mecânicos: rolamentos, engrenagens, eixos, acoplamentos, peças usinadas, sistemas de transmissão — peças críticas para qualquer linha de produção automatizada ou não.
  • Equipamentos industriais: bombas, compressores, turbinas, guindastes, sistemas hidráulicos e pneumáticos usados na agroindústria, mineração, saneamento, energia e construção civil.
  • Estruturas metálicas: torres, chassis, caldeiras, plataformas e suportes industriais, inclusive para geração eólica, ferroviária e defesa.
  • Automação eletromecânica: integração entre sistemas de controle, motores e sensores mecânicos que sustentam a Indústria 4.0 e as tecnologias digitais emergentes.

Esse setor fornece a base física da produção material e está presente na cadeia de valor de praticamente todos os setores estratégicos: saúde, energia, transportes, defesa, infraestrutura e agricultura.

A crise da indústria metal-mecânica brasileira é estrutural. Entre 2013 e 2020, o setor perdeu mais de 250 mil empregos formais, conforme dados da Abimaq. A capacidade instalada caiu abaixo de 70%. Em 2022, o Brasil acumulou um déficit superior a US$ 30 bilhões na balança comercial de bens de capital, e hoje importa cerca de 60% das máquinas e equipamentos utilizados pela indústria nacional.

Sem máquinas próprias, sem ferramentas nacionais e sem domínio técnico sobre os equipamentos de produção, o Brasil não poderá nunca realizar uma reindustrialização soberana.

2. A situação atual do setor no Brasil

A indústria metal-mecânica vive um ciclo prolongado de desmonte. Desde a abertura comercial dos anos 1990, passou a competir em condições desiguais com equipamentos importados. A valorização cambial, a ausência de política industrial, o encolhimento do BNDES e a falta de incentivos à inovação nacional contribuíram para a estagnação da engenharia mecânica e para o fechamento de centenas de fábricas.

Hoje, empresas que querem modernizar sua produção precisam importar desde componentes simples até linhas completas de automação. O país deixou de produzir o básico — como peças fundidas e usinadas — e passou a importar soluções completas, sem aprendizado interno. Essa dependência fragiliza toda a cadeia produtiva, inibe a inovação e destrói empregos qualificados.

3. O erro de imaginar uma indústria sem chão de fábrica

Com o avanço da Indústria 4.0, popularizou-se o mito de que o futuro seria "desmaterializado", centrado em software, algoritmos e serviços digitais. No entanto, toda transformação tecnológica depende de infraestrutura material concreta: sensores, motores, estruturas metálicas, peças de precisão.

Não existe inteligência artificial operando em linhas de montagem sem robôs, e não existem robôs sem motores, eixos e caldeiras. Até mesmo impressoras 3D industriais precisam ser construídas por fábricas de máquinas-ferramenta. Ignorar esse fato significa apostar numa reindustrialização aparente — aquela que consome tecnologia, mas não a produz.

4. O que o mundo tem feito — e o Brasil não

Países que lideram a industrialização contemporânea tratam seus setores de bens de capital com prioridade máxima. A China investe massivamente na produção de máquinas-ferramenta e robôs industriais, estruturando parques industriais regionais e redes públicas de inovação. A Alemanha protege sua engenharia mecânica com forte apoio estatal e articulação com universidades e institutos tecnológicos. A Índia, por sua vez, incluiu a produção de máquinas agrícolas e ferroviárias como eixo estratégico do programa “Make in India”.

O Brasil, ao contrário, trata sua base produtiva como obsoleta. A engenharia mecânica, outrora referência continental, foi relegada a segundo plano. A reindustrialização proposta corre o risco de repetir a armadilha da dependência tecnológica, se não reconectar com a produção de máquinas e sistemas próprios.

5. As lacunas do Nova Indústria Brasil

O programa NIB acerta ao definir missões voltadas à saúde, transição energética, agroindústria e transformação digital. Mas falha ao não estabelecer uma missão clara para a reconstrução da indústria metal-mecânica. Não há:

  • metas para substituição de importações de bens de capital;
  • programa nacional de reativação de ferramentarias, fundições e centros de usinagem;
  • integração com a formação técnica e com as universidades;
  • diretrizes para conteúdo local mínimo em compras públicas;
  • ou sequer uma política estruturada de estímulo à engenharia mecânica.

Sem corrigir essas lacunas, o país corre o risco de construir novas fábricas com tecnologia estrangeira, reproduzindo um modelo de reindustrialização subordinada.

6. O que fazer: diretrizes para reconstruir a base produtiva

A reindustrialização brasileira precisa começar pelas suas fundações — e isso exige uma estratégia clara e articulada para o setor metal-mecânico. As seguintes diretrizes são fundamentais:

  • Mapeamento nacional de capacidades produtivas: identificar as ferramentarias, fabricantes de máquinas, centros de usinagem, polos regionais e competências técnicas já existentes, para estruturá-las em redes produtivas coordenadas.

  • Criação de um programa nacional de revitalização da engenharia mecânica: com foco em inovação aplicada, automação acessível, retrofit de equipamentos e nacionalização de peças e componentes.

  • Linhas de crédito públicas específicas: por meio do BNDES, Finep e fundos regionais, com juros reduzidos e prazos adequados, para modernizar fábricas de equipamentos industriais e fomentar startups voltadas à mecânica de precisão.

  • Política de compras governamentais com conteúdo local mínimo obrigatório: priorizando máquinas, peças e estruturas fabricadas no Brasil em licitações de obras públicas, energia, defesa e saúde.

  • Integração com a formação técnica e tecnológica: reforçar a rede federal de institutos, universidades e escolas técnicas com foco em cursos de desenho mecânico, usinagem, soldagem, instrumentação e automação industrial.

  • Consórcios regionais de inovação e produção: unir empresas, instituições de pesquisa e governos estaduais em núcleos especializados por segmento (máquinas agrícolas, equipamentos hospitalares, construção pesada, logística ferroviária, etc.).

A reconstrução da indústria metal-mecânica não é uma meta isolada: é o elo necessário para tornar viável todo o projeto de reindustrialização nacional. Recuperar essa capacidade produtiva significa voltar a produzir os instrumentos com que o Brasil poderá construir o seu futuro — com autonomia, inteligência e valor agregado interno.

O futuro começa com aço e trabalho

É impossível pensar em uma indústria do século XXI sem uma base de ferro, aço, máquinas, peças e trabalhadores formados. Sem motores, guindastes, caldeiras e tornos, não há como fazer saúde, energia limpa, transporte público ou defesa nacional.

A indústria metal-mecânica é a engrenagem silenciosa que movimenta todas as outras. Ignorá-la é construir sobre areia. Reindustrializar com os pés no chão significa recolocar essa base no centro da política de desenvolvimento, com planejamento, crédito, inovação e trabalho. O futuro começa no chão da fábrica.

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