Os Mitos da Indústria do Futuro e o Bloqueio à Reindustrialização Brasileira (parte I)
Por Carlos Lima*
Em meio à euforia global com a chamada “Indústria 4.0”, o Brasil assiste, de forma passiva, à consolidação de uma armadilha ideológica: a crença de que o futuro produtivo prescinde de fábricas, máquinas e trabalhadores industriais. Essa ilusão tecnocrática, amplamente difundida por setores da mídia e parte do empresariado, tem servido mais para justificar a estagnação industrial brasileira do que para orientar qualquer estratégia de desenvolvimento soberano. A realidade, no entanto, é dura e inescapável: sem base industrial forte, não há futuro econômico autônomo.
A longa marcha da desindustrialização
Entre 1985 e 2023, a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro caiu de 27% para cerca de 11%, segundo o IBGE. Trata-se de uma das maiores retrações industriais entre países de médio e grande porte no mundo. Essa perda não ocorreu de forma espontânea ou natural, mas foi resultado direto de escolhas políticas que favoreceram um modelo agroexportador primário, voltado à geração de superávits de curto prazo, à custa da complexificação produtiva.
Enquanto países como China, Coreia do Sul e Alemanha fortaleceram sua indústria de base, o Brasil caminhou na direção oposta: abriu mercados, desregulamentou setores estratégicos, reduziu investimentos públicos e praticamente abandonou qualquer forma de política industrial ativa. No lugar de parques industriais integrados, temos hoje cadeias desarticuladas, dependentes de importações até mesmo de itens básicos como sensores, motores elétricos, rolamentos e fertilizantes.
A expansão do agronegócio e a regressão produtiva
A opção brasileira por um modelo primário-exportador se acentuou nos anos 2000 e 2010, com a valorização das commodities agrícolas e minerais. Em 2022, mais de 66% das exportações brasileiras foram compostas por produtos básicos, como soja, minério de ferro, petróleo e carne bovina. Em contrapartida, a participação de bens industrializados de média e alta tecnologia ficou abaixo de 10%, segundo dados da Secex/MDIC.
Esse fenômeno, conhecido como reprimarização da pauta exportadora, não se limitou ao comércio exterior. Ele teve impactos profundos na estrutura produtiva interna: redução da demanda por bens de capital nacionais, esvaziamento das cadeias produtivas internas, perda de empregos industriais e enfraquecimento da engenharia brasileira. O país trocou tecnologia por grãos — e hoje sente os efeitos de sua fragilidade tecnológica em áreas como defesa, saúde, infraestrutura e transição energética.
O fetiche da indústria “desmaterializada”
A chegada da Indústria 4.0 trouxe consigo uma série de promessas: fábricas inteligentes, automação total, Internet das Coisas, robótica colaborativa, inteligência artificial. No entanto, em vez de estimular uma reconstrução da base produtiva, esses avanços têm sido utilizados por parte da elite política e econômica para justificar a não reconstrução da indústria.
A ideia de que o futuro será puramente digital — sem chão de fábrica, sem operários, sem máquinas — é um mito perigoso. Nenhuma das tecnologias da Indústria 4.0 existe sem hardware, infraestrutura física, metais de base, componentes mecânicos e eletrônicos, todos produzidos por indústrias tradicionais. Mesmo robôs e impressoras 3D precisam ser projetados, usinados, montados e calibrados — atividades que exigem uma engenharia de base robusta.
A China, por exemplo, não caiu nessa armadilha. Em vez de terceirizar sua produção e se contentar com “soft power” digital, investiu massivamente em fábricas de rolamentos de alta precisão, linhas de produção de motores, usinas metalúrgicas automatizadas e fábricas de chips, como parte de sua estratégia de autonomia tecnológica. O plano “Made in China 2025” inclui, como prioridade, o fortalecimento de toda a cadeia metal-mecânica — e não apenas dos setores “da moda”.
O desprezo pela indústria de base
No Brasil, setores como metalurgia, mecânica de precisão, fundição, bens de capital e têxtil foram tratados como “ultrapassados”, “ineficientes” ou “incompatíveis” com o mundo digital. Esse erro estratégico custou caro.
Entre 2013 e 2017, o setor metalúrgico perdeu 50% do seu faturamento e fechou cerca de 90 mil postos de trabalho. Pequenas e médias fábricas encerraram atividades por falta de crédito, concorrência com importados e ausência de políticas públicas de estímulo. O país passou a depender de importações para abastecer setores estratégicos, como infraestrutura, mobilidade urbana e energia.
O problema não é a tecnologia em si, mas o modelo de adoção tecnológica neoliberal, centrado na substituição de pessoas por máquinas sem qualquer compromisso com a inclusão produtiva, a soberania nacional ou o desenvolvimento das capacidades locais.
Quebrando os mitos para reconstruir a indústria
Para reverter esse cenário, é necessário romper com os mitos que paralisam a ação pública e privada:
- A indústria do futuro não é etérea: precisa de equipamentos, logística, aço, cobre, sensores, atuadores e energia.
- Automação não elimina o trabalho: transforma-o. Se bem conduzida, pode gerar empregos mais qualificados, com melhores salários e condições.
- Não existe desenvolvimento autônomo sem manufatura forte: serviços e agronegócio sozinhos não sustentam uma economia complexa, resiliente e soberana.
- Política industrial é essencial: sem Estado planejador, financiamento público, compras governamentais e proteção inteligente, a indústria nacional não resiste à concorrência global.
O caminho da reconstrução
O Brasil precisa de um novo pacto produtivo, que una Estado, setor produtivo, universidades e trabalhadores em torno de um projeto de reindustrialização soberana e tecnológica. Isso implica:
- Reativar bancos públicos para financiar modernização fabril;
- Estimular parques industriais regionais integrados às cadeias globais com valor agregado;
- Desenvolver núcleos de produção de bens de capital, rolamentos, motores, turbinas, semicondutores, sensores e máquinas CNC;
- Priorizar políticas de conteúdo local e compras públicas com exigência de contrapartidas produtivas e tecnológicas.
Não há indústria do futuro sem base do presente.
E essa base começa no torno mecânico, na solda de precisão, no robô industrial, na fundição de aço e na linha de montagem. O Brasil precisa olhar para o futuro com os pés firmes no chão da fábrica — ou continuará sendo apenas exportador de soja e comprador de tecnologia alheia.
*Carlos Lima é economista e dirigente da CTB-RJ e do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro
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